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Opinião
STJ muda posição sobre abordagem policial e fundada suspeita
Diego Renoldi Quaresma de Oliveira
14 de outubro de 2025, 6h03
Constitucional Polícia
Quando éramos crianças, costumávamos brincar de um jogo chamado “polícia e ladrão”. Os “bonzinhos” tinham que encontrar os “caras maus” e, quando isso acontecia, gritava-se para todos ouvirem “pare em nome da lei” e o outro jogador parava imediatamente. Com algumas variantes do jogo, se a polícia conseguisse prender todos os ladrões no tempo estabelecido, ela ganhava. Caso contrário, os ladrões eram declarados vencedores e o jogo acabava.
Já disse em outras oportunidades que, no Brasil, criticar decisões do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores pode soar como antipático. Entretanto, isso precisa ser feito, superando eventuais desconfortos advindos.
Recentemente, foi noticiado nesta ConJur que por 3 votos a 2, no julgamento do HC 888.216/GO, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça considerou válida, dentro da perspectiva da “fundada suspeita” a abordagem e a busca pessoal feita por policiais após contexto de “nervosismo” do cidadão que após a abordagem, confessou estar vendendo drogas [1]. Com a referida decisão, ouve um certo overruling jurisprudencial no tocante à flexibilidade legal na abordagem policial nas duas turmas criminais do Superior Tribunal de Justiça e acendendo um debate que a advocacia criminal e a academia devem protagonizar em razão da redução de direitos fundamentais em jogo. [2]
Feito esse inicial esclarecimento, parece que o STJ quer aplicar o comando “pare em nome da lei” da nostálgica brincadeira ao invés de enxergar o mundo real e o quanto aparentemente inofensivo tirocínio policial prejudica as garantias constitucionais individuais do cidadão, pois é algo puramente subjetivo sem amparo legal que pode trazer consequências irreparáveis. Com isso, a Corte esquece da impreterível necessidade de se existir fundada suspeita para a legitimação da abordagem policial, isto é, de que a ação policial somente é válida se baseada em um juízo de probabilidade de que a pessoa esteja cometendo um delito (justa causa). É o que os americanos chamam de probable cause or reasonable suspicion before the police can sieze, frisk, or search anyone. [3]
Abordagem policial
Em voto vencido no HC 888.216, o ministro Rogério Schietti não teve qualquer dificuldade em manifestar a preocupação de muitos que atuam no Sistema de Justiça Criminal: a de que “[e]stamos voltando aos tempos em que a polícia, simplesmente alegando a suspeita de alguém por nervosismo, autorizava, com esse nervosismo, algo absolutamente subjetivo, a abordagem policial”.
Spacca
Dito de outro modo, sob uma perspectiva constitucional, a polícia em geral não pode com base em mera subjetividade e ausência de concretude ser livre para perseguir, apontar armas ou determinar a parada para busca pessoal em um cidadão sem que se esteja diante de uma das hipóteses do §2º do artigo 240 do Código de Processo Penal, que diz: “Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior”. [4]
O artigo 244 do Código de Processo Penal vem “completar” a questão da busca pessoal dizendo que esse tipo de procedimento não depende de mandado judicial apenas em três situações: no caso de prisão; quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou objetos que constituam indícios de delito; ou quando for determinada no âmbito de busca domiciliar.
Se, por outro lado, na presença policial o cidadão parecer nervoso, apertar o passo ou entrar na residência, a abordagem policial não está legal e constitucionalmente justificada.
Intimidação e coerção
Dada a infeliz recorrente violência e seletividade policial, a população, principalmente aquela que reside nas periferias, compreende que ser perseguida pela polícia é uma clara forma de intimidação e coerção, além do próprio constrangimento que causa. À polícia, é necessário accountability. As maiores mentiras contadas em ações penais que versão tráfico de drogas apenas para listar duas são: “o suspeito foi preso em local conhecido por ser ponto de tráfico de drogas”, e “perseguido, o suspeito jogou uma sacola contendo entorpecentes”. [5]
No mesmo sentido e para finalizar, valendo-se mais uma vez do que disse o ministro Schietti, o tema “afeta a vida de qualquer pessoa que esteja transitando nas ruas e que possa estar sujeita a uma abordagem policial sem a objetividade que se espera, conforme o Estado Democrático de Direito”.
O Poder Judiciário deve encontrar uma reposta adequada à Constituição sobre o tema do exercício do poder de polícia e a redução de direitos fundamentais e não ser parte do problema, até porque, se assim o for, além de transformar em arrematada ficção o que diz a lei e a Constituição, o resultado será desenterrar o velho problema romano de “quem vigia os vigilantes?”.
[1] Aqui
[2] A 6ª Turma do STJ já havia decidido no RHC 158.580, que a revista pessoal ou veicular baseada exclusivamente em “atitude suspeita” é ilegal. Em 2023, no AgRg no HC 747.421, a 5ª Turma entendeu há época que o nervosismo do suspeito, percebido pelos policiais, não é suficiente para caracterizar a fundada suspeita para fins de busca pessoal, uma vez que essa percepção é excessivamente subjetiva.
[3] Ver: DERSHOWITZ, ALAN. Stop in the name of the law, p. 149, in: Contrary to popular opinion, New York, Berkley Books, 1994.
[4] Infelizmente, como ressalta LOPES JR. Aury. (Direito processual penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 574 e 575) a fundada suspeita é uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado, que remete à ampla e plena subjetividade (e arbitrariedade) do policial (…) Trata-se de ranço autoritário de um Código de 1941.
[5] Isso é algo tão comum nos EUA que a doutrina e jurisprudência de lá até dão um nome para esse comportamento, chamando-o de “dropsy” testimony. Sobre o tema, ver: DERSHOWITZ, Alan, ob. cit. p. 149.
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