Problemas na coleta de depoimentos, falta de perícia no local, corpos que chegaram sem roupa para laudo necroscópico, pouca documentação dos ferimentos a bala, falta de exames residuográficos que comprovassem alegação de troca de tiros, poucas câmeras corporais funcionando. Pode parecer uma lista do tipo de problemas que sempre aparecem em nossas reportagens sobre investigações policiais de prisões irregulares ou assassinatos, mas todas essas questões se relacionam ao mesmo caso: a Operação Escudo, ação policial letal da PM no litoral paulista, que foram levantadas em um relatório feito pela organização HRW (Human Rights Watch).
Ao contrário do que alguns críticos pensam, esses dados não foram retirados da mente de algum progressista malvado ou da imprensa “cretina” que é “ligada ao crime” – adjetivos atribuídos pelo secretário de segurança pública aqui de São Paulo. A HRW analisou a documentação produzida pela própria polícia civil durante a investigação das mortes: boletins de ocorrência e laudos necroscópicos.
Tem duas questões correlacionadas que chamam a atenção, . A primeira é que estamos usando, mais uma vez, a polícia para investigar a polícia, o que, por si só, já revela riscos de falta de isenção nas investigações. De acordo com outro levantamento feito pela HRW, 61% dos casos de violência ou morte cometidos por policiais do período de 2011 a 2021 foram arquivados pelo MP (Ministério Público), pois foi reconhecida legítima defesa ou por falta de provas.
A segunda questão é: se o MP é um dos órgãos constitucionalmente responsáveis pelo controle externo da atividade policial, por que não tem sido o protagonista dessas investigações? Não apenas recepcionar os documentos produzidos, mas liderarem e executarem, indo até o local do crime, fazendo sua própria perícia técnica e colhendo depoimentos em locais seguros para que vítimas e testemunhas possam falar sem medo de represálias. Essas inclusive não são sugestões da minha cabeça, mas da própria HRW em carta enviada em setembro deste ano ao então Procurador-Geral de Justiça Augusto Aras e ao Conselho Nacional do Ministério Público. Nela, a entidade pontua que esses são os padrões internacionais de investigação de casos de mortes pela polícia.
Como quase tudo relacionado à segurança pública no país, temos um MP sem plano de ações efetivas ou metas contra a letalidade das ações policiais, com atividades tímidas sem o protagonismo que seu papel constitucional exige. Isso em meio a uma investida parlamentar para mitigar o controle externo da polícia militar com a nova lei orgânica das PMs aprovada a toque de caixa no Congresso.
Além disso, sejamos sinceros, falta compromisso político dos estados com investigações independentes. O que há é certo desprezo ou desconfiança contra quem pede que outros órgãos investiguem tais casos. Pode parecer um pouco de inocência minha, mas, se não houve nada ilegal na ação polícial e tudo foi feito sob a égide da tal legitima defesa, não há que se impedir que órgãos externos façam investigações. Pelo contrário, governadores, secretários de segurança e policiais deveriam ser os primeiros as incentivarem.
O mal feito, entretanto, é sempre o que se quer encobrir, sobretudo quando o compromisso com o direito à vida só vem à tona em casos específicos, como quando uma mulher exige o direito de decidir o que fazer com seu corpo, apenas para citar um exemplo.
Para as vidas que vagam em condições precárias, o direito à vida é simplesmente sufocado. Como disse a intelectual afro estadunidense Christina Sharpe em seu livro “No vestígio: negritude e existências” (editora ubu): “os contínuos assassinatos legais e extralegais de pessoas negras sancionados pelo Estado são a norma, e, para essa assim chamada democracia, necessários”. |