Faro policial não é prova
“Aliás, é preciso pontuar que o policial militar, diferentemente da maior parte dos civis, é profissional altamente treinado no combate ao crime. É da essência da sua função possuir a aptidão para rapidamente ‘separar o joio do trigo’, possuindo faro severamente aguçado para distinguir agentes que, por determinadas manifestações de comportamento, aparentam ou não estar dotados de boa-fé”.
O leitor que acompanha a Ponte deve ter listo esta pérola de sabedoria na reportagem de Beatriz Drague Ramos “PMs têm ‘faro aguçado’ para decidir quem é bandido, segundo desembargador de Santa Catarina”. Ela foi proferida pelo desembargador Luiz Antônio Zanini Fornerolli, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina em decisão que negava um habeas corpus para uma mulher acusada de tráfico de drogas.
O primeiro pensamento que me veio a mente quando tomei conhecimento dessa história é a relação entre faro, cães e caça. Ao longo da história da humanidade, esses três elementos estiveram juntos fornecendo ao homem a possibilidade de rastrear uma presa por um elemento sensorial, o cheiro, no caso.
A relação caçador e cão de caça não é igualitária, é uma relação de poder. É o caçador que orienta e guia o cão no seu objetivo. O cão cumpre a tarefa de localizar e entregar a presa. Os capitães do mato cumpriam essa função com os escravos fujões e hoje a polícia, dentro da linha de pensamento do desembargador, cumpre esse papel completamente desumanizada: uma instituição subalternizada dentro do sistema de justiça cuja a função é caçar presas e trazê-las para elite judiciária das mãos limpas e reputação irretocável.
Ao dotar o policial de um suposto faro de separar o joio do trigo, Fornerolli confirma que há um cheiro, um comportamento, um trejeito, uma cor, quem sabe, que faz com que um policial possa julgar um indivíduo sem precisar de outros elementos objetivos como imagens e documentos, sem precisar da tal fundada suspeita pregada pelo artigo 244 do Código de Processo Penal. O próprio desembargador confirma isso ao dizer, em outra decisão, que este poder de dedução que deixaria Sherlock Holmes no chinelo é capaz de “distinguir agentes que, por determinadas manifestações de comportamento, aparentam ou não estarem dotados de boa-fé”. Você não precisa ser culpado, ao que parece, basta parecer culpado, se comportar como culpado e assim o será. Isto não é uma inferência da minha parte, mas a realidade que reportamos semanalmente aqui na Ponte em casos de abordagens violentas e prisões sem provas.
Estudos do NEV-USP e da Defensoria Pública do Rio de Janeiro corroboram esta posição em números. De acordo com levantamento do NEV, 74% das prisões por tráfico, a palavra dos PMs era a única prova apresentada. O número é próximo com o que foi levantado no RJ, onde o mesmo acontece em 71% dos casos.
Quais seriam essas “manifestações de comportamento”?, me pergunto. Seriam ter a pele escura? Falar gírias? Uso de determinadas roupas? E como pode o comportamento ser prova de crime ou não? Fosse assim, em tese, o cidadão de bem da família tradicional brasileira seria o sinônimo encarnado de reputação ilibada. Mas não é isso que vemos cada nos noticiários com homens de Deus admitindo participação em esquemas de corrupção, cidadãos de bem enquadrados como terroristas e bilionários fraudadores nas capas dos jornais. Com esta parcela da população, o faro do Estado parece falhar miseravelmente.
Com estas posições, o desembargador Fornerolli ignora orientação do STJ – tribunal que está acima de sua alçada – que já tem jurisprudência clara no sentido de que abordagens só devem ser feitas com bases factuais e não em elocubrações, deixamos isso para os detetives geniais da literatura. O trabalho do policial não é investido de uma capacidade especial e única de ver o que ninguém vê, mas de atuar com base em fatos, provas.
São falas como estas que reforçam que existe ainda uma estrutura escravista em pleno funcionamento. Uma elite que para manter a ordem dentro de seus padrões envia seus leais companheiros para que os subalternos se lembrem de seus lugares a ferro e fogo, literalmente.
Jessica Santos
editora de relacionamento