Atentado em comício revela consenso de lideranças sobre o que constitui violência política, e quem pode exercê-la.
por Natasha Lennard, colunista
Alguns dos maiores perpetradores e causadores da violência política, de todos os lados do espectro, correram para repudiar a violência política após a tentativa de atentado contra o ex-presidente Donald Trump no sábado.
Os políticos rapidamente se uniram em torno da terminologia “violência política”, no lugar de "terrorismo", para descrever a tentativa de assassinato praticada por Thomas Matthew Crooks, que foi morto a tiros no comício no oeste do estado da Pensilvânia.
Examinada em conjunto, a onda de manifestações de repúdio revela um acordo claro sobre o que constitui a violência política, e em quais mãos deve permanecer o monopólio da violência.
“A ideia de que haja violência política (…) nos EUA, dessa forma, é simplesmente inédita, não é adequada”, declarou o presidente americano Joe Biden, apoiador da guerra genocida de Israel contra a Palestina, com um número de mortos que, segundo os pesquisadores, pode chegar a 186 mil palestinos.
O argumento mais imediato de Biden, porém, estava correto: ataques letais contra a classe governante dos EUA são extremamente raros nos dias de hoje. A violência política que não é “dessa forma”, porém – a violência política do desamparo organizado, da pobreza, das fronteiras militarizadas, da violência policial, do encarceramento, da deportação – é banalizada.
“Todos devem manifestar seu repúdio”, disse Biden sobre a tentativa de assassinato.
E praticamente todos os integrantes do establishment político do Partido Democrata manifestaram repúdio: “a violência política é absolutamente inaceitável”, escreveu na rede X Bernie Sanders, senador independente pelo estado de Vermont.
“Não há absolutamente lugar nenhum para a violência política em nossa democracia”, tuitou o ex-presidente Barack Obama, que esteve à frente dos esforços de guerra e ataques militares contra Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia, Iêmen, Somália e Paquistão, com um enorme número de mortes de civis; Obama acrescentou que deveríamos “usar este momento para renovar nosso compromisso com a civilidade e o respeito em nossa política”.
“Não há lugar para violência política, incluindo o terrível incidente que acabamos de testemunhar na Pensilvânia”, escreveu a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, do Partido Democrata do estado de Nova York.
O coro de repúdio era previsível e não é um problema em si mesmo: não há nada de errado em desejar um mundo sem tentativas aleatórias de homicídio, mesmo contra opositores políticos. Mas quando Israel Katz, ministro de Relações Exteriores de Israel, do partido de tendências fascistas Likud, que está no governo, escreve um tweet dizendo “a violência jamais pode fazer parte da política”, o próprio conceito de “violência política” fica esvaziado de sentido.
O problema não é simplesmente de hipocrisia ou falsidade, vícios tão comuns na política que quase não merecem ser mencionados. A questão, na verdade, é a qual imagem de “violência política” serve essa mensagem: dizer que “não há lugar nenhum” para a “violência política” em uma sociedade organizada pela violência política, interna e externamente, é concordar com a normalização dessa violência, desde que ela seja monopólio do estado e do capitalismo.
O autor Ben Ehrenreich observou no X: “não há lugar para a violência política contra homens brancos ricos. Isso é a antítese de tudo que os EUA representam.”
Trump e seu Partido Republicano sem dúvida se manterão comprometidos com um imaginário político de uma guerra racial apocalíptica e um sectarismo paranoico, que a tentativa de assassinato deve apenas fomentar.
Os democratas podem ficar à vontade para praticar a civilidade contra um homem que vem consistentemente incitando sua derrubada violenta, mas não podem fingir que suas condolências para Trump sejam de fato um apelo ao fim da violência política.
As lideranças democratas farão um apelo à civilidade e continuarão a encher os cofres dos departamentos de polícia em todo o país, e a enviar bilhões de dólares sem condicionantes, além de bombas, para Israel. Nos EUA, essas manifestações de repúdio contra a violência política agora preparam o cenário para uma repressão ainda mais violenta e um policiamento ainda maior dos movimentos de protesto e dissidência.
“Não toleraremos esse ataque da esquerda”, disse o deputado Mike Kelly, do Partido Republicano da Pensilvânia, que estava presente no comício. Pouco se sabe sobre a ideologia do suspeito atirador: ele seria supostamente filiado ao Partido Republicano, e já teria feito uma doação a um comitê do Partido Democrata, no dia da posse de Biden.
Enquanto isso, outros republicanos culparam os democratas simplesmente por dizerem a verdade sobre as posições de extrema-direita de Trump. “O dia de hoje não é apenas um incidente isolado”, escreveu no X o senador por Ohio J.D. Vance, anunciado hoje como candidato a vice-presidente na chapa de Trump. “A premissa central da campanha de Biden é que o presidente Donald Trump é um fascista autoritário que precisa ser detido a todo custo. Esse discurso levou diretamente à tentativa de assassinato do presidente Trump.”
Se até mesmo os democratas centristas que declaram o óbvio sobre Trump podem ser criticados pelos republicanos como irresponsáveis, parece mau sinal para a verdadeira esquerda que tente se organizar contra as forças fascistas daqui em diante, especialmente neste momento em que os movimentos de protesto de esquerda e pró-Palestina nos EUA são imediatamente criminalizados pelas lideranças de ambos os partidos.
É isso que a a paz significa em um mundo onde o único evento a despertar um coro bipartidário de repúdio à “violência” é um ataque contra um ex (e possivelmente futuro) líder mundial fascista.