A despedida de nossos mortos marca nossa humanidade. Reunir família e amigos para o derradeiro rito de passagem, o sepultamento ou tratamento do corpo é uma marca de diferentes culturas humanas. E o respeito a este momento sensível, no qual se processa o sentimento da perda física de alguém, é uma das raras universalidades humanas. Nas últimas semanas, entretanto, vimos o coturno militar romper esse momento sacro em Bauru. Policiais invadiram um velório, agredindo a mãe e os familiares de um corpo morto por colegas de farda.
Assistir às imagens de agressão dentro de uma terra sagrada, o lugar físico de descanso dos mortos, me deixou atônita. Guilherme Oliveira, de 18 anos, corpo ali velado, teve uma segunda morte ali pela mesma instituição de sua primeira morte, quando a paz de seu rito de passagem foi brutalmente interrompida. Parafraseando Christina Sharpe em seu “No vestigo: negridade e existência”, Guilherme e cada pessoa violentada foi “banida do reino humano” – uma ação sempre destinada a corpos pobres, pretos, mulheres, todos os vulneráveis desta terra.
Ler dona Nilceia relatando que precisou escolher entre velar o filho morto ou buscar o outro filho, levado pela mesma gente que matou Guilherme, é de dilacerar a alma de quem ainda guarda em si alguma humanidade. Em poucos dias, a PM tirou desta mãe: seus filhos (o irmão de Guilherme foi levado para delegacia por “desacato”), seu direito ao luto, sua dignidade física e emocional. “O sistema venceu”, teria dito um dos policiais de uma forma debochada que, segundo a família, já estava ali quando o corpo de Guilherme chegou para ser velado. E ele tem razão. O sistema do qual ele faz parte está vencendo sim. Cada violência é uma vitória deles nesta guerra que começaram e cujo alvo tem sempre destino certo.
Passados os ritos, dona Nilceia e sua família não terão direito ao luto. Para que Guilherme não tenha uma terceira morte e outros jovens não sejam levados à sepultura, sua família se une a tantas outras na luta contra a violência e para que a lei – que também tem seus ritos – seja cumprida igualmente para todos, independentemente de seu CEP, cor de pele ou condição financeira. É mais uma família gritando por justiça, mais uma mãe na frente de batalha, mais vozes engrossando o coro.
“Eu não achei que isso ia chegar à minha casa. E muitas mães se calaram. Muitas mães tiveram que guardar o seu luto, tiveram que guardar o seu grito de justiça. Eu agora tenho que provar a inocência do meu filho. Isso tem que parar. A polícia está aí para proteger, está aí para prender, levar à justiça para a justiça julgar. Ela não está para matar, para violar, para meter o pé no portão do cidadão de bem, do trabalhador”, como disse Nilceia à reportagem da Ponte.
Jéssica Santos
Editora de Relacionamento
Ponte Jornalismo 26/10/2024