Em setembro, 69 pessoas foram mortas pelas forças de segurança da Bahia – média de quase duas por dia. Três policiais morreram em confrontos. Os tiroteios e operações da polícia, antes restritos a bairros periféricos de Salvador, como Paripe e São Cristóvão, tornaram-se parte da paisagem em Calabar e Alto das Pombas, bairros próximos à área mais valorizada da cidade. A violência urbana, em sua versão extrema, bateu à porta da classe média.
Daí em diante, a crise seguiu um roteiro tradicional. Autoridades tiraram do armário frases de efeito – “não se enfrenta o crime organizado com rosas”, disparou Ricardo Cappelli, secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública; “não reconheço nenhum parâmetro de ONGs que fazem publicações sobre questão de segurança”, disse Rui Costa, ministro da Casa Civil, referindo-se aos dados públicos coletados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em seguida, como de praxe, põe-se em prática uma série de ações midiáticas. Libera-se mais recursos para o “combate ao crime”, cria-se uma força-tarefa para lidar com o descontrole da violência e abre-se caminho para o uso de caveirões, que fazem história na tragédia carioca de cada dia.
A ineficácia dessa receita é facilmente mensurável com dados. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes na Bahia cresceu 1.393% entre 1981 e 2021. Os dados são do SIM/DataSUS. Como fica claro no gráfico abaixo, esse descontrole da violência independe do partido que ocupa o governo estadual. Se é verdade que a taxa de homicídio cresceu 103% nas gestões do PT, ela já tinha aumentado 217% com o PFL – partido de direita que mais tarde mudou de nome para Democratas e se diluiu no União Brasil. Parodiando Nelson Rodrigues, que dizia que o “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”, pode-se dizer que a insegurança pública também não se improvisa – é obra de décadas de um trabalho muito bem articulado entre diferentes partidos incapazes de oferecer soluções reais para a população.
A Bahia é um caso exemplar do que acontece, com pequenas variações, no Brasil inteiro. As crises se sucedem, com picos pontuais, e são tratadas com placebos. A resposta costuma vir por meio da violência policial. Não é surpreendente que a Bahia tenha ultrapassado o Rio de Janeiro em 2022 como o estado em que a polícia mais matou. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 1.464 mortes causadas por agentes do Estado, uma incrível média de quatro por dia. A Bahia também liderou o ranking de mortes violentas (6.659).
Uma tragédia dessa escala só pode ser fruto de uma constelação de políticas equivocadas, repetidas à exaustão por décadas. Tentaremos elencá-las, de forma resumida, neste artigo.
As crises de segurança no Brasil costumam estar atreladas a três erros. O primeiro é a aposta nos gêmeos guerra às drogas e encarceramento em massa. Trata-se de problema conhecido e, ainda assim, incompreendido pelas autoridades brasileiras. O combate ao tráfico não apenas é anódino no objetivo de reduzir o consumo de drogas, como acarreta violência sistêmica e geração de renda drenada para a compra de armamentos por criminosos (como estamos vendo na Bahia) e ainda para a corrupção policial. A superlotação dos presídios é a consequência natural. Entende-se, no Brasil, que a prisão é um remédio para todos os males.
Esse erro representa um custo financeiro enorme para o Estado. Prende-se pequenos traficantes em vez de investigar os chefes do esquema. Conforme os presídios lotam, esgotam-se os recursos da polícia e cria-se um cenário fértil para o surgimento de facções.
A Bahia novamente nos serve de exemplo: em 1981, o estado contabilizava 1.377 presos; em 2021, eram 15.169. A população carcerária decuplicou, portanto. Como mostramos no gráfico acima, nada disso ajudou a dirimir a crise de segurança. Pelo contrário, os homicídios subiram de forma quase constante, passando de 310 casos para 7.206, nesses quarenta anos. O crime organizado ganhou força. As notícias dão conta de que, hoje, há oito facções atuando na Bahia. No Brasil, segundo o último levantamento feito pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, havia 53 facções em 2022, todas surgidas de dentro dos presídios.
O segundo erro é a crença que o uso indiscriminado de força pelas polícias vai resolver algum problema. Além de ferir direitos humanos, essa política tem consequências perniciosas para a segurança pública. Primeiro, porque a linguagem da guerra e da brutalidade – que se manifesta nas periferias, mas não nos bairros nobres – cria um abismo entre polícia e comunidade, inviabilizando a efetividade do trabalho policial. Segundo, porque a violência generalizada da polícia acaba por banalizar o uso da força. A sociedade passa a aceitar esse padrão de atuação como natural, condenando apenas a conduta individual de um ou outro policial que exagerou na dose. O comando das polícias não é responsabilizado. Por fim, a violência tem um custo psicológico para o próprio policial. Não são raros os casos de agentes que, sofrendo com problemas emocionais, suicidam-se. O tenente-coronel aposentado Dave Grossman explica esse fenômeno no livro On Killing: The Psychological Cost of Learning to Kill in War and Society, que é adotado por todas as forças de segurança norte-americanas.
O terceiro erro consiste na ideia de que segurança pública é assunto só de polícia. Essa visão torta impossibilita que se pense os fatores sociais por trás do crime. Com isso, não permite uma política de segurança pública integrada a outras pautas, como os cuidados com a primeira infância, o acesso à educação, à assistência social, à saúde, ao esporte, à cultura. Tudo isso é descartado como sendo um sonho de longo prazo, inatingível. A segurança pública no Brasil só pensa no imediato. “Não se enfrenta o crime organizado com rosas.”
Na Bahia e no Brasil, a política de segurança se resume a orquestrar o policiamento ostensivo, operações pontuais e, quando necessário, o uso da inteligência policial. Não há um projeto de mudança, que enxergue a segurança como um direito social a ser gradualmente atendido. A seguir nessa trilha, continuaremos gastando bilhões de reais em efetivo policial, equipamentos de ponta e prisões caríssimas. Deixaremos de lado aquilo que vários pesquisadores já concluíram se tratar da solução mais barata e efetiva para o descontrole da segurança pública: investir nas crianças, na educação, no futuro.
O morticínio da Bahia e a reação de integrantes do governo Lula mostra que o problema não é só o improviso das políticas de segurança: há também uma dose de negacionismo. O combate à violência deve ser feito com base em evidências científicas e ações intersetoriais. Desqualificar as estatísticas, como fez o ministro Rui Costa, não é solução para o problema.
A Bahia está como está graças a uma sucessão de erros. Jerônimo Rodrigues (PT-BA), primeiro governador autodeclarado indígena, pode mudar essa história se não ceder ao canto dos falcões. Do contrário, só nos restará torcer para que a missiva de Caetano Veloso ao Papa Francisco dê resultado e que Nossa Senhora Aparecida tenha piedade de nós.
Daniel Cerqueira
Pesquisador do IPEA, coordenador do Atlas da Violência e membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Renato Sérgio de Lima
Professor da FGV EAESP e diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
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