Presidente sancionou projeto de Lei Orgânica Nacional das PMs e dos Bombeiros Militares com 28 vetos nesta quarta (13/12); pesquisador alerta que texto continua pior que o da época da ditadura e é um risco para a democracia
PM de São Paulo durante ato contra o aumento da tarifa do transporte público, em 26 de janeiro 2016 | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo
A Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares foi sancionada, na quarta-feira (13/12), pelo presidente Lula (PT) com 28 vetos da proposta aprovada pelo Congresso Nacional.
Para Adilson Paes de Souza, mesmo com vetos presidenciais, a lei como um todo continua sendo pior que o decreto-lei 667, de 1969, que transformou a ação das polícias militares em polícias políticas para apoiar o Exército na repressão da ditadura civil-militar (1964-1985). Adilson é doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano, pós-doutorando em psicologia social e mestre em direitos humanos pela Universidade de São Paulo (USP), além de autor de Guardião da Cidade: Reflexões sobre casos de violência praticados por policiais militares.
“Nós não temos mais que falar em militarização das polícias militares, nós temos que falar em hipermilitarização das polícias militares, uma hipertrofia das polícias, porque agora elas podem atuar em outras atividades estatais. Nós estamos assistindo a um fenômeno da hipermilitarização da administração pública e nada disso tem a ver com a democracia, nada disso tem a ver com o Estado Democrático de Direito, e sim com a instauração de um Estado policial no seio da nossa democracia”, critica.
Adilson já havia feito esse alerta junto com o professor da Sciences Po (Instituto de Estudos Políticos de Paris), Gabriel Feltran, em artigo publicado na Folha ao destrinchar todos os problemas do projeto quando da aprovação no Senado Federal. Para ele, o governo federal se uniu com a Bancada da Bala, que é formada por parlamentares provenientes das forças de segurança pública, sem haver uma participação com a sociedade e um debate amplo. “No final das contas, houve um tremendo de um acordão porque o governo resolveu privilegiar outras pautas, como a economia, do que a pauta da democracia e dos direitos humanos. A lei continua sendo péssima para a sociedade, a lei continua sendo péssima para a democracia critica.
Ouvidor das Polícias de São Paulo, Claudio Silva concorda com Adilson em relação à militarização. “A lei não extingue e nem suspende qualquer efeito do decreto 667/69, que é um decreto da ditadura militar que traz no seu caput uma menção objetiva ao ato institucional nº 5, o ato mais violento da ditadura militar contra civis e é esse decreto que baseia a formação das nossas instituições policiais militares pelos estados do Brasil. Então, a lei perdeu uma grande oportunidade de suspender os efeitos desse decreto e reestabelecer o formato, o modelo de formação e constituição das corporações militares policiais dos estados”, avalia.
Claudio entende que a lei “reforça a hierarquização” e desconsidera a participação das camadas mais baixas das corporações, como os praças, para a construção de políticas públicas, apesar de entender que a sanção com os vetos foi melhor do que a versão original do projeto. “A lei também ignora qualquer perspectiva de consideração do policial militar como um cidadão detentor de direitos, notadamente direitos humanos, e aquele que não tem seus direitos humanos observados vai ter maior dificuldade de observar os direitos humanos dos outros”, aponta.
Adilson enfatiza que o texto tende a piorar a saúde mental dos policiais. “Estudos indicam que um dos fatores mais incisivos sobre adoecimento psíquico e suicídio entre policiais militares não são os fatores operacionais, ou seja, o risco inerente à atuação profissional ou estresse constante. São os fatores organizacionais e funcionais. A militarização já se inseria nesse contexto. Com a hipermilitarização poderemos ter um agravamento da saúde psíquica dos policiais e um aumento dos casos de suicídio entre esses policiais”, diz.
Adilson Paes de Souza é tenente-coronel aposentado da PM paulista e mestre em Direitos Humanos | Foto: Reprodução/Facebook
Para ele, a lei não tem benefícios e não prioriza o controle social das polícias. A disposição do artigo 29, parágrafo 2º, de os comandantes-gerais publicarem “plano de comando com metas, indicadores, prestação de contas e participação da sociedade, ajustado aos planos estratégicos da instituição”, por exemplo, contém um princípio básico da administração pública, que é a publicidade de atos.
“É uma obrigação de qualquer autoridade pública. Aliás, já existe uma obrigatoriedade de divulgação que não é exercida”, destaca. “Quem que vai controlar esse fluxo de informação, a qualidade da informação, que tipo, se vai ser quantitativa ou qualitativa, se essas informações realmente refletem a realidade ou se elas estão subnotificadas, quem que vai poder avaliar, quem que vai poder mensurar, quem que vai poder, digamos assim, exercer um controle sobre a produção desses dados que serão divulgados? A lei não fala, fica no ar”, prossegue.
Outro ponto mantido na lei promulgada e contestado por ele é o artigo 5º, inciso XI, que prevê que as PMs poderão “produzir, difundir, planejar, orientar, coordenar, supervisionar e executar ações de inteligência e contrainteligência destinadas à execução e ao acompanhamento de assuntos de segurança pública, da polícia judiciária militar e da preservação da ordem pública, subsidiando ações para prever, prevenir e neutralizar ilícitos e ameaças de qualquer natureza que possam afetar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio, na esfera de sua competência, observados os direitos e garantias individuais”.
Segundo o pesquisador, essas ações de “inteligência e contrainteligência” abrem margem para diversas interpretações, como as PMs interferirem na competência de polícias judiciárias, como Polícia Civil e Polícia Federal. “É investigação sobre ações criminosas? Mas isso não é competência da Polícia Civil e da Polícia Federal? Se for essa leitura, está invadindo a competência da Polícia Civil e da Polícia Federal. É inconstitucional e só vai causar mais problema e mais discórdia em uma área que já tem discórdia”, afirma.
E também na possibilidade de monitoramento de alvos considerados inimigos. “Na produção de informação, se nós pudermos traduzir essas ações de inteligência e contrainteligência como monitoramento de movimentos sociais, lideranças sociais, lideranças políticas, jornalistas, juízes, pessoas críticas da atuação de determinado governador, de determinada autoridade ou da polícia, como nós presenciamos o escândalo da Abin durante o governo Bolsonaro? Então, está aí um cheque em branco para a polícia militar, que agora poderá executar atividades para além do policiamento ostensivo e preservação da ordem pública, previsto no artigo 144 da Constituição, com um amparo legal”, alerta.
Para ele, a gestão perdeu a oportunidade de fazer um debate qualificado sobre segurança pública. “O governo Lula traiu movimentos sociais. O governo Lula traiu entidades pela desmilitarização da polícia, uma nova concepção de segurança pública”, declarou. “Eu gostaria que esses parlamentares ou o Lula se encontrassem com as Mães de Maio e outras tantas mães que tiveram seus filhos executados por agentes públicos, ou que os corpos desapareceram. O que é que ele tem para falar agora para essas pessoas? Todos esses esforços foram jogados no lixo e todas essas dores foram desconsideradas.”
Adilson pontua, ainda, que a Lei Orgânica não foi um aceno positivo às corporações ao lembrar, por exemplo, a omissão de integrantes da Polícia Militar do Distrito Federal durante as ações de vandalismo nos prédios dos Três Poderes quando houve a tentativa de golpe no dia 8 de janeiro. “As polícias não gostam do PT. Não vão gostar do PT. Eles [governo federal e parlamentares] fizeram um jogo de uma parcela da sociedade reacionária, achando que estavam agradando alguém. Não estão agradando ninguém”, analisa. “Essa prática que o governo atual fez sepultou definitivamente qualquer narrativa ou discurso que eles tinham de uma segurança pública mais ligada aos direitos humanos, à democracia e mais concentrada com a nossa Constituição.”
Vetos presidenciais
Entre artigos vetados que tiveram mais visibilidade durante a tramitação estão a subordinação das ouvidorias ao comando das PMs e a limitação de 20% das vagas de concursos públicos para mulheres, pontos que chegaram a ser rechaçados publicamente pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania em outubro.
Lula também barrou os trechos que permitiam que policiais participassem de manifestações coletivas de cunho político-partidário, ainda que na folga, e que expressassem sua opinião sobre questões políticas-partidárias publicamente usando fardamento e objetos que remetessem a corporação.
Claudio Silva considera que há pontos positivos, como o veto que tirou as ouvidorias do comando das PMs. “A ouvidoria é um órgão que precisa ter algum papel de controle externo da atividade policial. Sobre o comando do comandante-geral, a gente perderia esse valor fundamental que a ouvidoria tem”, pondera.
Violência de estado
Matéria » Reportagem
Jeniffer Mendonça
15/12/2023 4h12
Nenhum comentário:
Postar um comentário