29/05/2024 5h05
Catarina Duarte
Para Adilson Paes de Souza, diretrizes trataram segurança pública como ciência, mas, por pressão política, não ousaram em vincular repasse de verbas a adoção de medidas ; leia portaria na íntegra
Uso de câmeras acopladas aos uniformes de policiais militares do estado de São Paulo para registro das suas ações, implementada em 18 unidades, ajudou a reduzir violência policial | Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Em meio à polêmica em torno do novo edital para aquisição de câmeras lançado pelo governo de São Paulo, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) lançou uma portaria nesta terça-feira (28/5) com diretrizes para o uso do equipamento pelas forças de segurança. O texto, diz o pesquisador Adilson Paes de Souza, “tratou segurança pública como ciência”, mas não ousou. Sobram lacunas no documento, que não condicionou, por exemplo, repasses para a segurança pública à adoção dos procedimentos, avalia. O fato se deve a uma jogada política: o governo Lula (PT) não quer desagravar a bancada da bala.
Não há na portaria medida mais incisiva para as recomendações terem efeito, diz Adilson, que é doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, pós-doutorando em Psicologia Social e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Guardião da Cidade: Reflexões sobre casos de violência praticados por policiais militares.
O pesquisador lembra que já houve alinhamento da gestão Lula com a bancada da bala (como é chamado o agrupamento de parlamentares ligados à carreira na segurança pública) na aprovação da Lei Orgânica das Polícias — que, para Adilson, conferiu excessiva autonomia para as polícias militares e sedimentou a falta de transparência da instituição. Sancionado em dezembro passado, o texto sucateou mecanismo de controle da atividade da PM.
Para Adilson, o governo não criou medidas mais impositivas na portaria sobre as câmeras corporais para não desagradar à bancada da bala. “Faltou ousar um pouco mais neste texto”, diz.
Entre os principais destaques da portaria 648/2024 (leia íntegra abaixo) estão: a previsão de 90 dias como tempo mínimo para o armazenamento das imagens registradas, a preferência para haver acionamento automático dos equipamentos e o condicionamento de que estados que queriam usar recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública para compra de câmeras devem seguir as diretrizes.
Leia a portaria nº 684/2024
Adilson avalia que o governo poderia ir além. O cumprimento da diretriz poderia estar diretamente vinculado a todo repasse federal para a segurança pública dos estados. Ao contrário disso, segue-se permitindo que cada estado tenha suas próprias normas.
A portaria em si, avalia o pesquisador, é positiva, fruto de pesquisa e com ampla revisão bibliográfica. “Ela tratou a segurança pública como ciência, e não somente como uma função estatal”, fala. O que difere, afirma, do que tem sido feito por Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o secretário da segurança Guilherme Derrite em relação ao novo edital de câmeras de São Paulo. Ambos já deram declarações de que as mudanças que implantaram foram baseadas em estudos científicos, sem apresentar sequer um deles.
Entre os triunfos da portaria, segundo Adilson, estão a garantia de acesso às imagens para familiares de vítimas e advogados e também para a Defensoria Pública. O pesquisador diz que seria importante que as Ouvidorias também fossem incluídas nos órgãos que podem ter acesso. Ele lembra que, durante a Operação Verão, o Ouvidor das Polícias de São Paulo solicitou gravações das câmeras de casos que foram denunciados, mas teve seus pedidos negados.
É muito positivo também que as imagens tenham que ter tempo mínimo de armazenamento de 90 dias, avalia. O fato já torna o edital de São Paulo descumpridor da portaria, diferente do que disse o governador Tarcísio ao ser questionado sobre o texto. No documento, o armazenamento previsto é que vídeos intencionais (em que os policiais ligam as câmeras para registrar) sejam armazenados por 30 dias.
Apesar de elogiar a portaria, Adilson aponta algumas lacunas que ela deixa. Ao tornar obrigatório o uso das câmeras por forças federais, o texto não inclui as Forças Armadas que atuam na segurança em missões ligadas à Lei de Garantia e Ordem (GLO). Ele lembra da morte do músico Evaldo Costa, 52 anos, em 2019. O carro em que ele estava com a família foi fuzilado por militares do Exército que atuavam no Rio após decreto de GLO.
Há desafio, diz Adilson, em colocar em prática os artigos que falam de supervisão, avaliação do projeto das câmeras e de participação social na formulação dos projetos. “Como fazer isso se, pela lei orgânica, as polícias têm maior autonomia e independência?”, afirma.
Outro ponto de interrogação é a identificação obrigatória dos equipamentos, estabelecida pela portaria. Não há no texto clareza sobre como e a quem cabe a fiscalização. “Quem vigia o vigia?”, questiona Adilson. A portaria também prevê que o uso de câmeras seja vedado em situações excepcionais, sem descrever objetivamente quais são elas. “Você consegue explicar o que é uma situação excepcional?”, diz.
Adilson tem sérias dúvidas sobre a aplicação, na prática, da portaria. A hesitação tem como base o retrospecto. Ele lembra que, em 2012, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República editou a resolução nº 8. O documento dizia que as autoridades policiais deveriam deixar de usar em registros policiais, boletins de ocorrência ou inquéritos os termos “auto de resistência” e “resistência seguida de morte”.
“As polícias ignoraram e continuaram utilizando [os termos]”, diz o pesquisador. Em São Paulo, lembra, a mudança só ocorreu em 2013, quando passou a ser usada “morte decorrente de intervenção policial” para se referir a esse tipo de situação.
O pesquisador diz haver uma subcultura policial no Brasil. É como se uma camada fizesse com que regras existentes no âmbito formal não atinjam o cotidiano da instituição. “É um código de valor próprio, que barra qualquer tentativa de mudança e que retira a força dos atos normativos”, afirma.